A leitura dos considerandos do documento com sugestões para aperfeiçoar o Novo Acordo Ortográfico levaram-me a admitir
que daí sairia algo interessante e verdadeiramente útil. Quando cheguei à
introdução, as minhas esperanças ganharam força:
“Esta declaração não é um tratado de ortografia.
Apresenta, antes, sugestões de aperfeiçoamento e esclarecimento de alguns
pontos do texto de 1990, para pôr fim ao ‘desacordo’ e ao amálgama de
realizações em curso que deixam pairar suspeitas de ‘anarquia’.”
Excelente!, disse para mim mesmo.
Logo a seguir: “Trata-se de um contributo que
resulta de aturada reflexão em torno da aplicação da nova ortografia e sobre
algumas particularidades e subtilezas da língua portuguesa que não podem ser
ignoradas em resultado de um excesso de simplificação.”
Excesso de simplificação?! Será que vem aí o “complicómetro”, modalidade que praticamos com tanta convicção? E veio mesmo,
como vamos ver…
PROPOSTAS
DE ALTERAÇÃO DO AO90
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COMENTÁRIOS (MEUS)
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1. Sobre a acentuação gráfica
1.1. Reintroduz-se o acento em vários vocábulos que estão em
homografia com outros: pára, forma
do verbo parar; péla(s), nome e
forma do verbo pelar; pélo, nome e
forma do verbo pelar; pêlo(s),
nome.
1.2. O acento na forma dêmos
(presente do conjuntivo) para se distinguir de demos (pretérito perfeito do
indicativo) passa de facultativo a obrigatório.
1.3. Reintroduz-se o acento circunflexo nas 3.as pessoas do
plural dos verbos terminados em eem
e seus derivados: crêem, lêem, vêem, dêem, relêem, desdêem.
1.4. O acento da terminação -ámos do pretérito perfeito do indicativo dos verbos da 1.ª
conjugação passa de facultativo a obrigatório para a distinguir da terminação -amos do presente do indicativo.
1.5. A supressão do acento gráfico nos ditongos abertos
quando constituem sílaba tónica de palavras paroxítonas retiraria o acento
tónico nessas palavras terminadas em –r, pois se estas palavras perdessem o
acento passariam a agudas, pelo que a manutenção do acento é necessária.
Desta forma, desobedece-se à prescrição, do AO90, de não se acentuar os
ditongos ei e oi nas paroxítonas, mas obedece-se à regra de as acentuar
quando terminam em –r, como em blêizer, destróier, gêiser, lêiser.
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1.
Seguindo a mesma lógica, a ACL teria de recuar mais de 70 anos e reintroduzir
um bom número de acentos desambiguadores eliminados pelo AO45:
.bôla/bola
Quando lemos “Vamos à
bola!”, como interpretamos? “Vamos ao futebol!” ou “Vamos deliciar-nos com
uma daquelas bolas de carne típicas da gastronomia nortenha!”?
.êste/este
Em “Para este, não há
problemas.”, referimo-nos à localização geográfica ou ao demonstrativo?
E assim sucessivamente,
como em êle/ele, fôrma/forma ou côr/cor.
2. Considerando
que há uma diferença acentuada na pronúncia desta terminação (aberta no Sul,
fechada no Norte), é uma enorme gafe da ACL esta proposta.
Se há alterações
introduzidas pelo AO90 que fazem sentido, esta é uma delas.
Atente-se que o AO45
determinou a não acentuação de “dezoito” precisamente por não haver uma
pronúncia uniforme (“dezóito” no Sul, “dezôito” no Norte).
3. Uma
pérola de clareza esta proposta…
A “alteração” é
desnecessária. Basta articular as regras 2 e 5 da Base X:
a) Recebem
acento agudo as palavras paroxítonas que apresentam na sílaba tónica vogais
abertas e que terminam em -l, -n, -r, -x e -ps;
b)
Recebem acento circunflexo as palavras paroxítonas que contêm na sílaba
tónica vogais fechadas e que terminam em -l, -n, -r, ou –x.
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2. Sobre as sequências consonânticas
2.1. Recuperam-se as consoantes não pronunciadas:
a) Quando “geram homofonias geradoras de ambiguidade”
(sic!): acepção (sentido) vs.
acessão (consentimento); corrector
(quem corrige) vs. corretor (intermediário); espectador (aquele que olha) vs. espetador (o que espeta); óptica (visão) vs. ótica (audição); recepção (recebimento) vs. recessão
(retrocesso);
b) Nos casos em que a sua eliminação origina grafias que não
existiam na língua: abjeccionismo
(*abjecionismo), anticeptismo
(*anticetismo), conceptível
(*concetível), interruptor
(*interrutor);
c) “sempre que a consoante tem valor significativo,
etimológico e diacrítico”: conectar,
decepcionado, interceptar.
2.2. Recomenda-se o uso preferencial, “para evitar
arbitrariedades”, da grafia com a consoante na palavra característica, atualmente na lista das duplas grafias a par de caraterística.
2.3. Mantém-se a supressão das consoantes nos casos em que são
invariavelmente mudas em todos os países de língua oficial portuguesa. A
grafia passa a ser única em todos os países de língua oficial portuguesa: acionar, atual, batizar, coleção, exato, inspetor, projeto.
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4.
Aplicando o mesmo critério, teríamos de eliminar a palavra sportinguista dos dicionários…
5. O que é um valor significativo? Que dizer então de grafias (recomendadas pela ACL) em que a supressão da consoante muda poderá vir a afetar a pronúncia, como é o caso de coleção e inspetor ou projeto?
6. A arbitrariedade é a possibilidade de usarmos em pé de igualdade
característica e caraterística? Que fazer então ao par sector/setor anterior do AO90?
7. Aqui, a etimologia não conta…
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3. Sobre o emprego do hífen
Por motivos de clareza
gráfica, o que permitirá evitar possíveis riscos de ambiguidade, o emprego do
hífen é recomendado nos compostos com elementos de ligação quando os seus
elementos, com a sua acentuação própria, não conservam, considerados
isoladamente, a sua significação, ou seja, o sentido da unidade não se deduz
a partir dos elementos que a formam.
(…)
3.1. Só,
por conseguinte, as combinações vocabulares que formem verdadeiras unidades
semânticas e sejam, ipso facto, verdadeiros compostos é que exigem, em rigor,
o emprego do hífen, como água-de-colónia,
braço-de-ferro, entra-e-sai, pé-de-meia.
3.2. Os
vocábulos mandachuva, paraquedas e paraquedista passaram a escrever-se aglutinadamente
por se ter perdido a noção de composição. Os restantes compostos com a forma
verbal manda- e pára- continuam a ser separados por hífen conforme a tradição
lexicográfica: manda-lua, pára-choques, pára-brisas, pára-raios.
3.3. Emprega-se
o hífen nos vocábulos onomatopaicos formados por elementos repetidos, como em
au-au, bau-bau, lenga-lenga, tique-taque, truz-truz, zás-trás.
3.4. Para evitar indecisão interpretativa e manter identificação de forma, recomenda-se o emprego do hífen: co-réu (*corréu), co-utente (*coutente).
3.5. Reintroduz-se
o hífen “em palavras formadas pelos elementos não- e quase-, por se
considerar que os elementos possuem uma função prefixal quando se unem a
bases substantivas, adjetivas ou verbais.”
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8. Veja-se
a “clareza” deste discurso!
9. Só
nos faltava mais esta: a juntar às exceções “consagradas pelo uso” do AO90, agora as
da ACL.
10. É assim tão grande a diferençaentre paraquedas e para-choques? Até o Portal da Língua Portuguesa admite as duas grafias: para-quedas e para-quedas…
11. Então, passamos a escrever zum-zum, xi-xi e zigue-zague?
12. Regra
(?) que nada esclarece. E que fazemos a coleitor,
cotexto, covalente, coação
(ação conjunta) ou cocorrente (corrente
de direção igual à de outra cocorrente)?
13.
Seguindo a mesmo fio de raciocínio, muitos outros hífens estarão na calha:
uns a reintroduzir e outros a fazerem história…
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Curiosamente uma das regras mais obscuras do AO90 não mereceu qualquer censura da ACL: o uso de maúscula/minúscula
nos pontos cardeais.
Neste caso, justificava-se
mesmo um regresso a 1945.
AO45
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AO90
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Os nomes dos pontos cardeais
e dos pontos colaterais, que geralmente se escrevem com minúscula inicial,
recebem, por excepção, a maiúscula, quando designam regiões: o Norte do Brasil; os mares do Sul; os povos
do Oriente; as terras do Levante; o Ocidente europeu; o
Noroeste africano; a linguagem do Nordeste.
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A letra maiúscula inicial é
usada nos pontos cardeais ou equivalentes, quando empregados absolutamente: Nordeste, por nordeste do
Brasil, Norte, por norte de Portugal,
Meio-Dia, pelo sul da França ou de outros países, Ocidente, por ocidente europeu, Oriente, por oriente
asiático.
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Simples: Designando regiões,
os pontos cardeais escreviam-se com maiúscula: "Sou do Sul de Portugal, mas gosto mais de Norte."
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Muito complicado: Empregados absolutamente,
os pontos cardeais escrevem-se com maiúscula: "Sou do sul de Portugal, mas
gosto mais de Norte."
Só os exemplos permitem ter um vislumbre do sentido daquele “absolutamente”…
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Com tal abstrusidade, não é de
espantar que uso da regra resulte em asneira:
CONCLUSÃO:
A ACL diz que “aperfeiçoar o
Acordo Ortográfico não significa rejeitar a nova ortografia, mas antes
aprimorar as novas regras ortográficas e retocar determinados pontos”, mas as propostas que agora apresenta:
a) Esquartejam a acentuação;
b) Desfiguram as regras das
consoantes mudas;
c) Subvertem as orientações de
uso do hífen.
O resultado é uma amálgama que, ao contrário do que se
pretendia, é mais ambígua, omissa e lacunar que o A90!
Depois de analisar com detalhe
as 15 páginas de sugestões, fiquei com a impressão de que a vontade dos membros
Academia de Ciências seria rejeitar o Novo Acordo Ortográfico. Atendendo aos
argumentos apresentados, seria mais claro e sustentável do ponto de vista
intelectual assumir essa posição do que querer, à viva força, criar um novo AO…
Não conheço as razões dos
cinco membros da ACL que votaram contra a aprovação do documento, mas têm a
minha solidariedade.
A montanha pariu um rato? Não, apenas um
musaranho!
Abraço.
ProfAP
Para o lado do Brasil, a única coisa que eu acho que deveria se repensado é a volta do acento diferencial em para do verbo parar e as regras dos hifens nos substantivos compostos e também incluir nas regras o uso obrigatório do hífen em siglas, nomes próprios e estrangeiros. Todo o resto, acho que só vai atrapalhar do que ajudar, afinal muitas crianças já escrevem segundo as regras da nova ortografia.
ResponderExcluirEnfim, qualquer modificação no acordo ortográfico precisa ser articulado com todos os países de língua portuguesa, pois o que a Academia propõe é basicamente modificar o acordo unilateralmente.
Caro Tiago: Concordo totalmente com o que diz no último parágrafo.
ExcluirQuanto às alterações que sugere:
a) O uso obrigatório do hífen antes de siglas, nomes próprios e estrangeirismos já está estabelecido no Anexo 2 do AO90;
b) Mais simples do que repensar as regras do acento diferencial e da hifenização, seria eliminar todas as exceções atualmente previstas.
Cumprimentos.
AP