Este artigo foi escrito por Henrique Monteiro no
Atual de sábado passado.
Dedicou-o a Vasco Graça Moura e a todos os opositores do Acordo Ortográfico. (...)
A minha adesão ao Acordo Ortográfico (AO) tem a ver simultaneamente com confiança e humildade. Confio na sabedoria de quem o fez (não na sua infalibidade) e sou suficientemente humilde para reconhecer que muitos aspetos que dizem respeito à etimologia e à fonética, tais como outros menos relevantes para este caso, me escapam. Além da confiança e respeito por nomes como Lindley Cintra ou António Houaiss, de que não vejo muita gente comungar, mas antes desprezar, dediquei eu próprio algum tempo ao assunto. E, uma vez que faço da escrita a minha profissão há mais de 30 anos, penso ter algo a dizer.
Rodrigues Lapa, que foi um mestre da língua portuguesa, filólogo distinto, sustinha que as mudanças de ortografia eram sempre violentas. Esta asserção é hoje inteiramente justificada pela quantidade de pessoas que apenas se opõem ao Acordo "porque sim" - sem quaisquer argumentos.
A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um "p" em ótimo, agora lhe dizerem que esse "p" (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem o "p" perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! Mas qual português, Santo Deus (ou melhor diria Sancto Deus?). O português do assucar ou do açúcar? O de Viseu ou Vizeu?
Dedicou-o a Vasco Graça Moura e a todos os opositores do Acordo Ortográfico. (...)
A minha adesão ao Acordo Ortográfico (AO) tem a ver simultaneamente com confiança e humildade. Confio na sabedoria de quem o fez (não na sua infalibidade) e sou suficientemente humilde para reconhecer que muitos aspetos que dizem respeito à etimologia e à fonética, tais como outros menos relevantes para este caso, me escapam. Além da confiança e respeito por nomes como Lindley Cintra ou António Houaiss, de que não vejo muita gente comungar, mas antes desprezar, dediquei eu próprio algum tempo ao assunto. E, uma vez que faço da escrita a minha profissão há mais de 30 anos, penso ter algo a dizer.
Rodrigues Lapa, que foi um mestre da língua portuguesa, filólogo distinto, sustinha que as mudanças de ortografia eram sempre violentas. Esta asserção é hoje inteiramente justificada pela quantidade de pessoas que apenas se opõem ao Acordo "porque sim" - sem quaisquer argumentos.
A verdade é que ninguém se conforma, depois de ter sido obrigado a pôr um "p" em ótimo, agora lhe dizerem que esse "p" (no qual nunca encontrou utilidade) não faz falta. Há quem argumente com esse pai tirano, o latim, e com a etimologia da palavra optimus. A palavra sem o "p" perderá a identidade. Alguns enxofram-se e dizem que lhes matamos o português! Mas qual português, Santo Deus (ou melhor diria Sancto Deus?). O português do assucar ou do açúcar? O de Viseu ou Vizeu?
"Philosophia", "pharmacia" ou "phleugma" também terão perdido essa
identidade (para filosofia, farmácia ou fleuma)? Ora, o facto de o "phi" grego
deixar de se distinguir do "f" na grafia não me parece ter provocado dano ao
idioma. Mas há, insistem, o problema do fechamento das vogais. Ou seja, a mania
portuguesa (que não brasileira, angolana ou moçambicana) de comer as vogais.
Este argumento é o que afirma que passaremos" a dizer "aspêto" em vez de
"aspéto", uma vez que a retirada do c fecha a vogal. Pode parecer um argumento
poderoso, mas não é. Não dizemos "Mêlo" desde que o apelido deixou de se
escrever "Mello" ("Vasconcellos" ou "Sampayo" também se dizem do mesmo
modo).
Reparem - e repare o execelente poeta e tradutor, a quem o texto é
dedicado - que a forma de acentuar nada ou pouco tem a ver com o modo de
escrever, mas sim com o modo de ouvir. Logo ele, que nasceu na Foz do Douro,
bastava-lhe andar até à Ribeira para ouvir dizer "Puârto" e muitas outras coisas
que foram morrendo com a voragem unificadora fonética da televisão. No norte
dizia-se "baca" sendo a palavra com "v"; e o macho da "baca" era "voi" apesar de
lá estar um"b". Mais estranho: em Lisboa sempre se disse "contiúdo" apesar do
"e", ao contrário de Coimbra e Porto onde se diz "contêúdo". Em Lisboa, "ôito",
"dezóito", "vinte e ôito"; no Porto, "óito", "dezôito" e "vinte e óito". E
sempre se escreveu da mesma forma... Aliás, segundo a professora Maria Helena da
Rocha Pereira, o fechamento das vogais pré-tónicas começou em Portugal em finais
do século XVII ou princípios do século XVIII - ainda não havia acordos
nenhuns.
Agora, se me perguntarem por que razão em 1911 "pae" passou a "pai" e
"mãi" passou a "mãe" (como até hoje se escreve) não sei dizer, do mesmo modo que
me irrita o "espetador" no acordo atual. Mas a propósito daqueles que juram que
"espetador" não distingue o que assiste a um espetáculo de um picador de gelo,
refiro a frase: senti os pelos eriçarem-se pelos braços. E eis que toda a gente
compreende onde está o quê. Ainda sobre as confusões e fechamentos e aberturas
de vogais, vejam a frase: "Gosto particularmente do teu gosto" - quando a leem
dizem (pelo menos os cultos, como o presidente do CCB) "gósto" e "gôsto"
instintivamente. Como em "Faz força e força aquela porta" sabem que primeiro é
"fôrça" e depois "fórça".
Permitam-me, ainda, referir que, durante a minha vida, "sòzinho" ou
"sòmente" perderam o acento. Pois bem, nunca notei qualquer inflexão (para
"suzinho" ou "sumente") no modo de pronunciar aquelas e muitas outras palavras
(advérbios de modo e diminutivos) a que aconteceu o mesmo.
Há ainda os que afirmam não gostar do acordo por razões estéticas. É
aceitável. Mas a ortografia, sendo uma representação, não pode agradar a todos,
e menos ainda reproduzir a pluralidade (e até pessoalidade) de pronúncias e
modos de dizer. Exigi-lo seria como pedir a um pintor que pintasse o céu não
como ele o vê, mas como cada um de nós, pessoalmente, o vê. Tarefa
impossível.
Posto isto, o AO é importante porque aproxima da fonética uma série de
palavras. E fá-lo, pela primeira vez, em função de um idioma que, sendo
português, é também propriedade, matriz e identidade de outros povos e de outras
latitudes. Cedemos? Não sei, nem me importa. Não quero uma língua para me
distinguir do Brasil. Prefiro uma que me aproxime. E quem diz Brasil, que tem
200 milhões de falantes, diz naturalmente Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde,
São Tomé e Timor.
Respeito o argumento de que a língua deve evoluir por ela, sem
intervenção governamental. Creio, no entanto, que deve haver uma única e
determinada ortografia nos manuais escolares e nos documentos. Ainda que cada
escritor (como cada editora ou jornal) prefira o seu modo de escrever (Pessoa
nunca respeitou o acordo de 1911), a ortografia escolar e oficial não poder ser
espontânea nem à vontade do freguês. Acrescento que, curiosamente, nenhum de nós
(ou quase) lê Pessoa (nem Eça, nem Camilo, nem sequer Aquilino ou Nemésio) na
ortografia que os autores escolheram, assim como, apesar de usarmos a língua de
Camões, há muito que não grafamos as palavras como ele ("Armas & os barões"
ou "Occidental praya"). Quero com isto dizer que um jornal, uma editora, um
escritor ou um Centro Cultural de Belém que não adira ao AO, ver-se-á, a breve
prazo, a braços com uma escrita anacrónica... E um dia, tal como Pessoa ou
Camões, será lido com a ortografia que então estiver em vigor.
Eis porque fui um dos entusiastas, na altura como diretor do Expresso,
da utilização do AO nas publicações do Grupo Impresa. Eis porque não aceito que
uma lei discutida durante mais de 20 anos seja constantemente colocada em causa.
Ou que os opositores do AO esqueçam sistematicamente que a forma como escrevem
resulta também de um AO imposto por lei.
Não vale a pena pensarmos que cada geração tem a pureza da grafia. O
que pensar de Marco Túlio Tiro que, para poder transcrever os discursos de
Cícero, abreviou diversas palavras com sinalética que até hoje usamos (etc.,
v.g., e.g.). Talvez o mesmo que muitos pensam das abreviaturas feitas pelos
jovens nos telemóveis e redes sociais. E, no entanto, é a grafia que de estar ao
serviço da comunicação - não o contrário.
Acirrar ânimos, insultar adversários, fazer juramentos solenes em torno
de uma simples representação do nosso idioma faz-me lembrar aquele padre tio de
Brás Cubas que o genial Machado de Assis (e não por acaso cito um autor
brasileiro que devia ser mais lido em Portugal) descreve assim: "Não era homem
que visse a parte substancial da igreja; via o lado externo, a hierarquia, as
preeminências, as sobrepolizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia do
que do altar. Uma lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos
mandamentos". (E aqui, a palavra infração segue o modo como ele a escreveu ...
em 1881).
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