Há opiniões e opiniões sobre o
Acordo Ortográfico. As fundamentalistas (a favor ou contra) do “sim, porque sim”
ou do “não, porque não”, numa escolástica repetitiva e militante, e as
refletidas e com argumentos consistentes. No segundo caso, está o artigo do
prof. Fernando Venâncio (contra o AO90, mas a favor de "um acordo como deve ser") que aqui partilho.
Vale a pena lê-lo na íntegra, pois
não será tempo perdido!
Concordo com vários dos pontos
de vista apresentados. Outros, nem tanto…
1. A
facultatividade do uso de acento no pretérito perfeito nos verbos em –ar (como
falamos e falámos), parece-me defensável, uma vez que as duas
pronúncias estão instaladas (aberta no Sul, fechada no Norte). Quando muito,
poderíamos propor, em nome da simplificação, a eliminação do acento. Foi esse o procedimento adotado no AO45 com "dezoito" (a par de “boina” e “comboio”), também pronunciado aberto no Sul e fechado no
Norte).
2. Embora
defendida com argumentos consistentes, parece-me desnecessária a reintrodução
das consoantes não pronunciadas, mesmo admitindo que a sua supressão pode vir a ter implicações na pronúncia.
3. Quanto
à remoção pura e simples do AO90 e esperar “que os anticorpos que ele gerou se
diluam”, defendo uma revisão do texto, expurgando-os de
inconsistências e erros, mas que não seja feita unilateralmente nem nos termos propostos pela Academia das Ciências de Lisboa.
Um Acordo como deve ser
Existe
um antiacordismo militante. E existe um antiacordismo inteligente.
O
antiacordismo militante vive num desassossego. Acredita em mundos perfeitos,
mas acha irreparavelmente imperfeito o mundo que nos calhou. Por isso,
irredutível no seu pessimismo, não perde tempo com a razão. Para ele, ponderar
é já dormir com o inimigo.
O
antiacordista militante jura que nunca lê nada, livro ou jornal, grafado
segundo o Acordo de 90. É uma atitude supersticiosa, fetichista, mascarada de
heroicidade. E quando lembramos que é também um luxo, somos olhados como
provocadores.
Na
sua desconfiança da racionalidade, o antiacordismo militante não se confia
menos à retórica. Perante o Acordo de 90, mas perante qualquer intervenção na
ortografia, ele declara-os «crime de lesa-pátria» e proclama que «a língua é
identitária do povo e da sua cultura». Ortografia, Língua, Identidade: eis o
curtíssimo percurso duma visão essencialista, desatinada, que acha que o Mundo
está feito assim.
Não
está. O turco continuou a ser a mesma exacta língua quando, em inícios do
século XX, trocou a ortografia árabe pela latina. O farsi, ou persa, mantém-se
um idioma da família do nosso (peçam a um iraniano que conte de 1 a 10), mesmo
se redigido em caracteres árabes. O mirandês não pertence menos ao grupo
ásture-leonês por servir-se da ortografia portuguesa. E o galego, ainda que
escrito à espanhola, é de todas as línguas a mais próxima da nossa, e há até
quem diga que são a mesma.
Da
'ortografia' à 'identidade' vai a distância de um desvario. Sim, o discurso da
'identidade' é o dos charlatães da política por esse mundo afora, apelando aos
instintos mais básicos do córtex reptiliano. Só um profundo sentido da tragédia
pode inspirar, em matéria ortográfica, os ais pela perda do 'património'. A
militância antiacordista acharia «atentado à nossa identidade» um convénio internacional
que se reunisse nesta Academia para retirar, com a devida solenidade, o acento
circunflexo a "pêro". É que nele poderia estar escondida, quem sabe,
a essência da alma portuguesa.
*
A
primariedade do antiacordismo militante só tem paralelo na grandiloquência dos
propagandistas do Acordo de 90. A acreditar neles, esse Acordo espelharia, que
digo eu, garantiria a «unidade essencial da língua portuguesa».
De
resto, são parcos em ideias sólidas sobre aquilo que apoiam. A uns, contenta-os
o legalismo («O Acordo está em vigor, ponto final»), a outros, anima-os o
fatalismo («O Acordo está em vigor, paciência»). Em momentos de lucidez,
concedem que haverá umas pontinhas a amanhar, mas há-de pensar-se nisso quando
tudo estiver ratificado. Não lhes passa pela cabeça que o amanho dessas
pontinhas poderia, exactamente, lubrificar as ratificações. Mas pronto: também
não lhes dêmos ideias.
Uma
coisa anda, desde há muito, a pedir uma resposta: estaria o português precisado
duma mexida ortográfica? Oh sim, urgentemente. Assim pensaram os participantes
portugueses e brasileiros num magno congresso havido, em 1967, em Coimbra. Tudo
em nome da 'Lusofonia'. A palavra não existia ainda, mas o sentimento já
rondava, e conduzia a actos de histeria
colectiva. Acharam os congressistas que uma intervenção ortográfica não só era
urgente como teria de ser drástica. E porque o problema mais insolúvel era o
dos acentos nas esdrúxulas («género» / «gênero», «cómico» / «cômico»), ficou
logo ali decidida, por jubilosa aclamação, a proposta de eliminação de todos os
acentos nas proparoxítonas. Estavam lançadas as bases do fatídico Acordo de 86.
Tudo
se passou, sempre, a esse nível: o da euforia pouco crítica, o do aconchego
lusofónico, o da leviandade científica ao serviço de sonhos universalizantes.
Ficaram dispensados os estudos exaustivos da realidade do idioma, mais o
previsível reflexo de cada uma das medidas.
*
Mas,
perguntemo-nos: ainda que não urgente, continuaria uma intervenção na
ortografia a ser desejável, ou mesmo conveniente? Aí, já a questão é outra. E
ela mereceria uma resposta afirmativa. Veja-se o meu discretíssimo caso
pessoal.
Em
1984, publiquei no Jornal de Letras uma proposta de Reforma da ortografia do
português, fundada na primazia da pronúncia. Era uma proposta radical. Previa
(só uns exemplos) uma arrumação ao sector do som 's', que podemos grafar de 7
maneiras, e uma racionalização da grafia 'x', que corresponde a 5 sons
diferentes. Eram medidas ousadas, mas não propriamente originais. Sabe-se que
os sábios reformadores de 1911 debateram seriamente a uniformização ortográfica
dos sons 'j' e 'z'. Sim, quem de nós não foi ver ao dicionário se rabugice não
era com "j", ou deslize com "s"? Facto é que a minha
patriótica proposta de 84 não levantou a mínima onda no lago da opinião
linguística portuguesa. Dito doutro modo: fiz história, mas só eu o sei.
E
porque é que fiz história? Porque, ó surpresa, o Acordo de 90 foi fundado, ele
também, nesse mesmo e sadio princípio da primazia da Pronúncia sobre a
Etimologia, até então primeiro e determinante critério ortográfico. Sendo
assim, onde é que as coisas correram mal?
As
coisas começaram a correr mal muito cedo. E começaram nessa falha, por parte
dos autores do Acordo, em assumir agora a Pronúncia, e mais exactamente a
Pronúncia de cada país, como critério decisivo da grafia do Português.
Ficaram-se pelas águas mornas das 'pronúncias cultas', em si uma novidade
meritória, mas mais insinuada do que definida.
O
pior veio depois. A sã prioridade do critério sonoro morreu na praia
portuguesa. Fez-se facultativo o assinalar das nossas diferenças de tipo
falamos e falámos. Prescindiu-se da diferenciação gráfica dos nossos pára e
para. De bem maior envergadura, e bem mais prenhe de consequências, foi o
desproteger das vogais átonas anteriores a certas sequências consonânticas.
Refiro-me, claro, à diferenciação gráfica de coacção e coação, ou de corrector
e corretor. E, se é certo que estas perfeitas novas homografias se conservam
escassas, numerosíssimos são os novos casos de dúvida, e dúvida crescente, que
o desaparecimento das consoantes em jogo já começou a trazer. Acenar com os
restritos casos de tipo padeiro ou de tipo inflação, ou com o fechamento em
actual e mesmo em bactéria, é mera demagogia. O nosso vocalismo átono, que já
era duma enervante indeterminação, vê agora os escolhos sonoros
multiplicarem-se exponencialmente. Não era o momento de mexer em matéria tão
fluida, tão instável, tão já de si caótica. Saiu-nos a emenda bem mais
insuportável que o soneto.
Para
que a tempestade fosse mesmo perfeita, não se cuidou de uma prevenção de
riscos, nem depois se vislumbrou qualquer intervenção pedagógica. Essa total
ausência de acompanhamento profissional das sacudidelas que um Acordo destes
sempre traria, essa ausência é, em si mesma já, uma forma de pública
auto-desconsideração. E se é certo que, por parte dos linguistas portugueses, o
interesse pelo Acordo de 90 é, e foi sempre, decepcionante, também é verdade
que a célebre "Nota Explicativa" dos autores do Acordo ficou estes 27
anos a falar sozinha. É que jamais alguém forneceu a mínima defesa técnica,
científica, do Acordo. Tudo quanto se ouviu foi alarido ideológico, jogos de
sombras sobre uma etérea 'unidade', numa ainda mais impalpável 'lusofonia'.
*
E
agora? O cenário não está para festas. Dadas as patentes limitações do
legislador em matérias linguísticas (lembrou-o hoje Nuno Pacheco no Público),
resta-nos a resistência até ao fim dos nossos dias, que se desejam longos e
repletos.
Não
era o futuro que sonhávamos? Não era. Alguém o pediu assim? Ninguém, que se
saiba. Pobres, sim, dos professores, pobres das criancinhas. O verdadeiro
problema ainda são eles, os que não têm safa. São eles os que merecem, e por
isso podem exigir, que abandonemos a zona de conforto, e devem poder contar com
o nosso empenhamento, o nosso activismo. Onde restar ainda uma brecha de
racionalidade, é obrigação nossa explorá-la.
A
primeira medida inteligente poderia ser que, sim senhor, algumas propostas do
Acordo de 90, não sendo transcendentais, são aceitáveis. Estão entre elas
― a
eliminação do hífen em formas de haver de,
― a
eliminação de acentos nas formas verbais dêem, crêem, lêem ou vêem (mas nunca
em dêmos ou em fôrma),
― a
inclusão no alfabeto das letras K, W e Y,
―
uma boa arrumação nos usos do hífen,
― a
eliminação do 'c' em Árctico e Antárctico,
Também
não tenho objecção de princípio a que os nomes dos meses e das estações se
iniciem por minúscula. Sem entusiasmo, mas também sem birra de maior.
E,
no limite, até concordaria com a eliminação do acento gráfico em estóico,
heróico ou paranóico, coisa que, vendo bem, não serve qualquer propósito
unificador, e apareceu no Acordo como Pilatos no Credo.
Uma
palavra sobre os "aperfeiçoamentos" que a Academia das Ciências
recentemente propôs para o Acordo de 90. São, a meu ver, medidas problemáticas,
ao visarem uma observância ainda mais rigorosa dos propósitos unificadores do
Acordo e, sobretudo, ao pressuporem no utente português um conhecimento bastante
detalhado das variantes brasileiras. Mas só um exame de listas exaustivas das
consequências das medidas propostas permitirá uma apreciação ponderada.
Um
antiacordismo inteligente aceita as realidades do idioma, tal como recusa o
bálsamo das retóricas identitárias. Mas não se faz de desentendido, e olha com
apreensão as novas e crescentes confusões que o Acordo de 1990 vem fomentando.
E, mesmo divertindo-se com as criativas hipercorrecções que cada dia florescem,
vê nelas a prova provada de quanto tino haverá de ter-se quando se quiser
intervir na ortografia do Português europeu, essa complexa e fascinante
relojoaria.
*
Vamos
então já para novo Acordo? Calma. Será preciso primeiro remover o actual, e dar
depois tempo a que os anticorpos que ele gerou se diluam. Uma coisa é certa: a
nossa ortografia está mesmo precisada duma boa demão. Uma demão bem concebida,
bem elaborada, bem conduzida. Pode ir-se pensando nisso, sem pressas, sem
sobressaltos, e sobretudo sem assaltos aos viandantes.
O
Brasil tem, no campo da ortografia, problemas próprios, graves e crescentes, e
há-de querer, um dia, dar-lhes solução adequada. Será difícil pormo-nos todos
de acordo, e o mais certo é nunca mais haver 'Acordo' nenhum.
Ao
contrário de outros países colonizadores, Portugal abandonou historicamente o
idioma no Brasil à sua sorte. Isto é, nunca investiu na 'protecção', no
estímulo, da sua norma, sobretudo em cenário colonial. E eu acho que fez bem.
Permitiu o desenvolvimento duma gramática alternativa que, em não poucos aspectos,
se revela mais rica, mais flexível. E a linguística portuguesa deveria evitar
dar hoje apoio, mesmo por omissão, aos sectores mais reaccionários da
linguística brasileira.
A
nossa História foi aquela que foi, e a «defesa da unidade essencial da língua
portuguesa» é hoje tagarelice ideológica, nunca tendo sido (e, repito, ainda
bem) um empenho político. Sim, Portugal nunca foi linguisticamente
imperialista. Uma parvoíce? Um golpe de sabedoria? É tarde para nos
preocuparmos com respostas. A «desagregação» da língua portuguesa, que cada
Acordo disse querer estancar, é de há muito irreversível.
Em
suma: o 'Acordo' do futuro poderá ser um acordar em não nos empatarmos mais uns
aos outros. E esse, senhores e amigos, será, finalmente, um Acordo como deve ser.
Academia
das Ciências de Lisboa
9 de
Março de 2017