Nota prévia: Já disse aqui, mais do que uma vez, que sou um divulgador crítico do Novo Acordo Ortográfico. Uma das vantagens que lhe reconheço é uma efetiva simplificação das regras, sobretudo na hifenização. Ainda assim, essa vantagem fica “manchada” por duas constatações:
a) As exceções
consagradas eram dispensáveis (como compreender que se tenha suprimido o acento
desambiguador na forma verbal para,
mantendo-o, por exemplo, no infinitivo pôr?);
b) O Vocabulário do Portal da Língua Portuguesa (VOP) e o Vocabulário da Academia Brasileira de Letras (VOLP) não coincidem na leitura do texto
do Acordo. O VOLP aplica as regras “à
risca”, enquanto o VOP adota uma perspetiva
“criativa”/complicativa. Exemplos: à-vontade e à vontade (cá) vs. à vontade
(lá); cor-de-rosa e cor de rosa (cá) vs. cor de rosa (lá).
Face ao nó górdio em
que o AO se transformou, acho que deve haver ajustamentos/reformulações, mas não sou defensor da sua suspensão ou revogação. No
entanto, por uma questão de princípio, e concordando que o objetivo de unificar
as normas euro-afro-asiático-oceânica e
brasileira é utópico, não poderia deixar de divulgar aqui o texto de Maria
Regina Rocha “A falsa unidade ortográfica”, publicado no jornal Público de ontem.
A falsa unidade ortográfica
O
Acordo Ortográfico está em causa. Instituições e publicações há que o aplicam;
outras, que o rejeitam. O grande público contesta-o, e a esmagadora maioria dos
cidadãos não consegue compreender o que se está a tentar fazer à Língua
Portuguesa.
Efectivamente,
embora genericamente as pessoas estejam contra esse acordo, infelizmente a
forma como se extremaram posições levou a que, num determinado momento, quem
tinha o poder político lhe conferisse força de lei, sem uma atenta e lúcida
reflexão sobre o mesmo e as suas gravíssimas implicações, sobretudo de natureza
linguística e cultural, com repercussão no ensino e no domínio da língua.
Como
ainda estamos em fase de transição e as leis são os homens que as fazem,
esperemos que as razões serenas e lúcidas se imponham e façam com que aqueles
que representam o povo legislem de acordo com o supremo interesse do país e da
língua portuguesa, seja ela falada onde for.
Lembro
apenas, como precedente, que o Acordo Ortográfico de 1945 foi nessa data
assinado por Portugal e pelo Brasil, que o Brasil o tentou aplicar durante dez
anos e que, em 1955, rendido à especificidade do registo ortográfico da
variante do Português do Brasil, revogou esse acordo. Assim, se Portugal tomar
a iniciativa de reflectir e, com razões ponderosas, reformular o texto do
Acordo actual, não fará nada de inédito nem beliscará as relações entre os
países envolvidos. Aliás, será de referir, ainda, que, recentemente, o próprio
governo brasileiro anunciou que vai adiar a obrigatoriedade da aplicação do
acordo para 2016…
Focando,
então, o Acordo actual, em primeiro lugar, deverei dizer que uma pessoa com
formação linguística naturalmente que não estaria, à partida, contra um acordo
ortográfico. E deverei dizer, ainda, que houve, neste acordo, tentativas
(embora não totalmente eficazes) de resolver algumas questões ortográficas
relativamente à grafia de novas palavras, concretamente no que diz respeito à
utilização do hífen.
No
entanto, este acordo enferma de um grande pecado original: não alcança
minimamente o apregoado objectivo da unidade na ortografia.
Para
que serve um «acordo ortográfico»? Para unificar a ortografia de povos que
falam a mesma língua. Ora, com este acordo, a ortografia da Língua Portuguesa
não se unificou. Tentei obter resposta a uma pergunta simples: quantas palavras
se escreviam de forma diferente no Brasil em comparação com a forma como as
mesmas palavras se escreviam em Portugal e nos restantes países de Língua
Oficial Portuguesa antes do Acordo e depois do Acordo? Não consegui obter uma
resposta objectiva da parte de defensores do Acordo Ortográfico. Pergunto:
parte-se para a tentativa de aplicação de um acordo ortográfico sem se saber
claramente quantas palavras é que mudam na ortografia?
Assim,
procurei eu a resposta, consultando o «Vocabulário de Mudança» disponibilizado
no Portal da Língua Portuguesa (http://www.portaldalinguaportuguesa.org/).
E,
considerando a informação aí veiculada, a resposta é a seguinte (contagem feita
manualmente): antes do Acordo – e exceptuando as palavras com alteração do
hífen, as palavras graves acentuadas no Brasil e não em Portugal (como ‘idéia’
– ‘ideia’) e as palavras com trema (pelo seu número residual e por tais
situações afectarem sobretudo a ortografia brasileira) –, havia 2691 palavras
que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo,
‘facto’ – ‘fato’), havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais (por
exemplo, ‘abstracto’ e ‘abstrato’ resultam em ‘abstrato’), e havia 1235 palavras
iguais que se tornam diferentes.
Está
a ler bem: com o Acordo Ortográfico, aumenta o número de palavras que se
escrevem de forma diferente!!!
Isto
é, havia 1235 palavras que se escreviam da mesma forma em Portugal e no Brasil
que, com o Acordo, mudam, a saber: 190 ficam com dupla grafia em ambos os
países (por exemplo, ‘circunspecto’ e ‘circunspeto’); 57 ficam com dupla grafia
mas só em Portugal (por exemplo, ‘conceptual’ e ‘concetual’, que no Brasil se
escreve ‘conceptual’, mantendo a consoante «p»); 788 mudam para uma das
variantes que existem no Brasil, por vezes a menos utilizada ou a considerada
mais afastada da norma padrão (por exemplo, ‘perspetiva’: em Portugal, só se
admite esta forma – sem «c» –, mas no Brasil admitem-se duas, ‘perspetiva’ e
‘perspectiva’, sendo esta última a preferencial); finalmente, 200 mudam para
uma até ao momento inexistente e que passa a existir apenas em Portugal (por
exemplo, ‘receção’, que no Brasil só admite a forma ‘recepção’, que passa a não
ser possível em Portugal).
Esta
última situação é a mais aberrante: são 200 as palavras inventadas, que não
existiam e passam a ser exclusivas da norma ortográfica em Portugal. Alguns
exemplos: em Portugal, com o Acordo, passa obrigatoriamente a escrever-se
‘aceção’, ‘anticoncetivo’, ‘conceção’, ‘confeção’, ‘contraceção’, ‘deceção’,
‘deteção’, ‘impercetível’, enquanto no Brasil se escreve obrigatoriamente
‘acepção’, ‘anticonceptivo’, ‘concepção’, ‘confecção’, ‘contracepção’,
‘decepção’, ‘detecção’, ‘imperceptível’.
O
problema diz, pois, respeito sobretudo à grafia das palavras que contêm as
vulgarmente chamadas «consoantes mudas». Segundo os referidos dados do Portal
da Língua Portuguesa, com o Acordo Ortográfico, no que diz respeito às palavras
que mudam, no Brasil continuam a escrever-se 1235 palavras com essa consoante
etimológica (978 de dupla grafia e 257 que se escrevem só com a manutenção da
consoante), enquanto em Portugal e nos restantes Países de Língua Oficial
Portuguesa, esse número desce para 247, e todas com dupla grafia!!!
Leu
bem: no Brasil, são 1235 as palavras em que se mantém essa consoante, enquanto
em Portugal e nos restantes Países de Língua Oficial Portuguesa são apenas
247!!!
Em
Portugal, altera-se a ortografia fazendo desaparecer as referidas consoantes e,
afinal, no Brasil, essa ortografia de cariz etimológico mantém-se!!!
Não
vou aqui falar da questão da dupla ortografia e de fragilidades e incorrecções
presentes nos textos referentes ao Acordo Ortográfico, que têm um efeito
negativo no ensino, na aprendizagem e no domínio da Língua Portuguesa (tal
poderá ser objecto de outro artigo).
Aqui
apenas estou a referir como falsa a propalada unidade ortográfica!
Maria
Regina Rocha
Abraço e bom domingo!
AP
Já tinha lido a opinião de Regina Rocha no jornal, onde de facto ela coloca o dedo numa ferida bem chocante no meio disto tudo e na forma como este processo tem sido conduzido oficialmente!
ResponderExcluirO blog "Alegrias e Alergias" vai à final no Concurso de blogs do Ano do "Aventar". Categoria de Banda Desenhada. Para quem quiser votar, são só uns cliquezitos, como aqui se explica:
http://margarida-alegria.blogspot.pt/2013/01/a-minha-estrondosa-derrota-e-o.html
Desde já os meus cumprimentos e o meu agradecimento.
Margarida
Este é "o" argumento. Defendi sempre o AO até começar a trabalhar com a nova grafia e a dar conta desta enorme contradição. Nem percebo como só agora aparece alguém a falar nela, sendo tão evidente.
ResponderExcluirÉ com grande tristeza que reconheço que um acordo ortográfico entre Portugal e Brasil é uma impossibilidade.
Um acordo repleto de contradições. Para se fazer um acordo ortográfico faz-se necessários muitas pesquisas antes de torná-lo lei. Caro Antonio venho te fazer um pedido. Tá rolando uma gincana super legal lá no "Ô Trocyn Bão"
ResponderExcluirEstou participando com um poema bem estiloso numa linguagem do caipira mineiro. E estou pedindo seu voto. Acesse o link: http://www.riosul2012.com/2013/01/gracita-chegada-do-mineirim-no-o-trocyn.html
Meu muito obrigada! Beijinhos no coração!
Gracita
Olá, Gracita!
ExcluirPode contar com o meu voto ;)
Bjs
AP
E acredita nesses números? Outras contas, mesmos dados: http://lampadamagica.blogspot.pt/2013/02/os-numeros-verdadeiros-sobre-mudanca.html
ResponderExcluirMais: http://lampadamagica.blogspot.pt/search/label/an%C3%A1lise%20do%20vocabul%C3%A1rio%20da%20mudan%C3%A7a
Boa noite.
ResponderExcluirNão tendo investigado o assunto, não tenho dados que me permitam acreditar ou deixar de acreditar nos números divulgados. Limitei-me a divulgar o artigo. Na mesma linha, publicarei amanhã uma mensagem com a perspetiva do "Lâmpada Mágica".
Cumprimentos.
AP
este texto trouxe-me uma dúvida. diz-se "havia 2691 palavras que se"? não é mais correcto dizer-se "haviam 2691 palavras que se"?
ResponderExcluirquanto ao tema: sou completamente contra o acordo, não tenho o mínimo interesse em forçar a evolução (ou regressão) da minha língua em prol de "relações linguísticas" alheias.
não tenho nada contra pequenos acertos na língua ou com a própria evolução natural da língua. mas penso que já todos percebemos que não é bem este o barco que navegamos.
sou uma nacionalista orgulhosa. adoro portugal, a sua história e a sua língua.
Boa noite, Joana.
ExcluirDeve dizer-se "havia 2691 palavras", pois o verbo haver, quando significa existir, é impessoal e só se conjuga na terceira pessoa do singular.
Pode ver uma explicação detalhada sobre o assunto no meu outro blogue: http://portuguesemforma.blogspot.pt/search?q=havia
Cumprimentos.
António Pereira