Carta do diretor executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa aos deputados portugueses, a propósito da discussão, na Assembleia da República, no dia 20/12/2013, da Petição pela Desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico de 1990.
Excelentíssimo Senhor Deputado,
Excelentíssima Senhora Deputada,
Será discutida dia 20 de dezembro [de 2013], na Assembleia da República, uma petição que pede a desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado por todos os países da CPLP e já aplicado em vários deles. Foram também recebidos recentemente, na Assembleia da República Portuguesa, por um Grupo de Trabalho da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, dois professores brasileiros que haviam sido recebidos por comissão de natureza semelhante no Senado Brasileiro. Importa, acerca destes dois assuntos, esclarecer alguns pontos pela posição do Instituto Internacional da Língua Portuguesa, instituição da CPLP responsável pela articulação dos esforços de difusão da língua portuguesa no seio da Comunidade e no mundo.
• Os dois professores brasileiros que estiveram em Portugal não são «representantes do Senado», como se tem tentado fazer crer em alguma imprensa. São dois cidadãos individuais, ligados a iniciativas privadas (sobretudo do ensino), que foram ouvidos por uma comissão no Senado Brasileiro no âmbito de uma sua proposta de revisão radical da ortografia portuguesa e enviados a Portugal para conhecerem a situação no país quanto à aplicação do Acordo Ortográfico. De qualquer forma, nem o Senado Brasileiro se pronunciou, como um todo, contra ou a favor do Acordo Ortográfico, nem o Senado poderia vincular ou desvincular o Brasil de um tratado internacional como o Acordo Ortográfico.
• A chefe de Estado do Brasil, Dilma Rousseff, não adiou a aplicação do Acordo Ortográfico no Brasil, mas apenas a data-limite para a sua aplicação plena, declarando que tal iniciativa tem, de resto, como propósito fazer coincidir a data de plena aplicação do Acordo Ortográfico no Brasil com a de Portugal (2015). A clarificação dessa intenção foi feita diversas vezes por responsáveis brasileiros, nomeadamente pelo próprio Embaixador do Brasil em Portugal, ainda há dois meses (cf. ”O Brasil e o Acordo Ortográfico”), através da imprensa escrita. Em suma, contrariamente ao que tem vindo a ser afirmado por alguns opositores ao Acordo Ortográfico, o Brasil não suspendeu a aplicação do Acordo nem anunciou qualquer intenção de o vir a fazer; pelo contrário, tem-se demonstrado empenhado na sua plena aplicação no espaço da CPLP.
• No Brasil o Acordo Ortográfico foi aplicado em 2009, tal como em Portugal, sendo obrigatório o seu uso nas instituições e concursos públicos, incluindo em todos os níveis do sistema de ensino, e sendo essa aplicação acompanhada pela totalidade ou quase totalidade das editoras, dos meios de comunicação social e por um gradualmente alargado número de cidadãos individuais. Tal como em Portugal.
• Todos os Estados-membros da CPLP assinaram o Acordo Ortográfico. Apenas dois não o ratificaram ainda, afirmando reiteradamente, porém, a sua intenção de o fazer logo que disponham de meios técnicos para tal. Nesse sentido, têm sido conduzidos estudos e adotadas medidas para aplicação do Acordo Ortográfico nesses mesmos países, como os representantes de cada um deles puderam detalhar na recente "Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial”, realizada em Lisboa em outubro passado, com organização do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, por via do Instituto Camões.
• O texto do Acordo Ortográfico não enferma de grande número de erros e menos ainda de erros que impossibilitem a sua aplicação. Prova disto é o facto de, pelo menos em Portugal e no Brasil, o Acordo Ortográfico ser usado pelas instituições oficiais e no ensino, incluindo pelas centenas de professores de Linguística do ensino superior que desde a aplicação não se têm manifestado contra esta alteração às regras.
• Os pouquíssimos erros e lacunas (que afetarão, no máximo, umas poucas dezenas de formas escritas num universo de centenas de milhares) e, sobretudo, as áreas lacunares do Acordo Ortográfico (nomeadamente as que dizem respeito à escrita de formas graficamente não adaptadas ao português) estão em fase de avançada discussão no âmbito da criação do Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (VOC), instrumento previsto no Tratado e no Plano de Ação de Brasília para a Promoção, Difusão e Projeção da Língua Portuguesa (2010), em elaboração sob coordenação do Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Este trabalho tem vindo a ser desenvolvido em sede da CPLP, por uma equipa técnica transnacional, como acordado oficialmente por todos os países, e a sua primeira versão será publicada dentro de meses, na primeira metade de 2014.
• A discussão dessas questões problemáticas da aplicação do Acordo Ortográfico (que, repita-se, são numericamente pouco representativas) está a ser realizada por comissões nacionais de peritos, nomeadas pelas instâncias oficiais de cada país, constituídas por linguistas do maior renome nos respetivos países e que representam as mais importantes instituições científicas de cada Estado. Os trabalhos já desenvolvidos neste âmbito, muito animadores a todos os títulos, apontam inequivocamente para soluções de clarificação dos poucos casos geradores de dúvida, de modo a facilitar a aprendizagem das novas regras, e não para uma revisão do tratado.
• Os instrumentos oficiais de aplicação do Acordo Ortográfico já existentes, contrariamente ao que se afirma na petição a ser discutida, não enfermam de grande número de discrepâncias entre si ou com o estabelecido no Acordo Ortográfico, pelo contrário. Tal já foi provado num estudo técnico elaborado pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional, de Lisboa, apresentado à Assembleia da República em abril do presente ano, no âmbito de um Grupo de Trabalho da Comissão de Educação e Ciência. A petição em discussão no dia 20, na AR, de resto, não foi elaborada por linguistas nem é em razões técnicas que a sua oposição ao Acordo Ortográfico se baseia; são falsos os argumentos técnicos apresentados, como foi fácil e cabalmente demonstrado pelo estudo técnico do ILTEC.
• O Acordo Ortográfico resulta de um processo desencadeado em Portugal e no Brasil nos anos 60 do século passado e traz consigo décadas de discussão, a nível técnico e sobretudo a nível político. Os seus objetivos foram plenamente atingidos: temos hoje para o português, num único documento legal, regras únicas de escrita, não extinguindo porém as variantes escritas representativas de formas diferentes que as palavras têm entre países ou em diferentes partes do país. Isto é, em português há quem escreva "ouro" e quem escreva "oiro", como já havia anteriormente: tal não releva de regras de escrita diferentes, mas antes da natural variação da forma como falamos, com que o Acordo Ortográfico não pretende acabar (ele é apenas isso mesmo, ortográfico).
• Nos últimos dez anos, a generalidade das línguas europeias faladas em mais do que um país como língua oficial empreenderam reformas à sua ortografia: o espanhol (em 1999 e em 2010), o francês (1990, aplicada gradualmente desde 2008), o alemão (1996), o holandês (1996 e 2006) e o romeno (1993, aplicada plenamente em 2010). Em todos os países em que ocorreram reformas houve polémica, mas as reformas acabaram por vingar, com ou sem alterações às propostas iniciais.
Do mesmo modo, sempre que a ortografia do português foi alterada anteriormente (1911, 1931, 1943, 1945, 1971-73, 1990) os vocabulários ortográficos oficiais aclararam questões menos bem conseguidas tecnicamente nos documentos legais que introduziram a reforma. Houve em todos os casos pessoas que se opuseram e muitos que nunca adotaram as mudanças durante a sua vida, como é natural. Tal não contraria o que são os factos: escrevemos hoje de forma diferente do que o faziam Eça de Queirós ou Machado de Assis há pouco mais de um século. Hoje, nove dos dez jornais portugueses mais vendidos usam hoje o Acordo Ortográfico, bem como todos os brasileiros. Todas as instituições governamentais e oficiais dos nossos países usam a nova grafia, bem como as organizações internacionais a que pertencem (como a UE ou o MERCOSUL) em que o português é língua de trabalho. No ensino a transição para a nova grafia está praticamente completa, tanto em Portugal como no Brasil, sem que em relação a isso haja notícia de particulares problemas.
Escrevemos hoje de forma diferente do que o faziam Eça de Queirós ou Machado de Assis há pouco mais de um século sem que tal tenha trazido inconvenientes ou nos impeça de continuar a comunicar como 250 milhões de pessoas que partilham uma mesma língua. O Acordo Ortográfico permite ultrapassar mais uma barreira para que tal aconteça, unificando do ponto de vista legal as regras que regem a escrita de todos quantos escrevemos em português sem contudo alterar as variantes que nos caracterizam individual e coletivamente ou a forma particular como falamos a nossa língua. O Acordo Ortográfico é, nesse sentido, uma afirmação de comunhão para o futuro que deve transcender a discussão de questões técnicas isolados que pertencem ao domínio técnico e no domínio técnico estão a ser resolvidas, como previsto no tratado firmado por todos os Estados que partilham o português como língua oficial.
Leia-se o artigo recente e esclarecedor do embaixador do Brasil em Portugal e o parecer que o ILTEC elaborou aquando no âmbito da sua participação no Grupo de Trabalho de Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico, em março do corrente ano.
Grato pela atenção, com os melhores cumprimentos votos de um bom trabalho.
Prof. Dr. Gilvan Müller de Oliveira
Diretor Executivo do Instituto Internacional da Língua Portuguesa
Texto transcrito do Ciberdúvidas (http://ciberduvidas.pt/acordo.php?rid=2850)
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