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sábado, 22 de abril de 2017

Na esteira de um parecer sobre o Acordo Ortográfico



Um artigo interessante que permite compreender melhor a posição de Angola em relação ao Novo Acordo Ortográfico.


Na esteira de um parecer sobre o Acordo Ortográfico

Filipe Zau |*  15 de Abril, 2017 (Jornal de Angola)

O acordo ortográfico é uma convenção pela qual se devem reger os utilizadores de uma língua, seguindo, em cada país, a lei oficial estabelecida para a escrita desse mesmo idioma que, como todos os outros, não tem proprietário. O dono de qualquer língua é apenas o usuário da mesma.

Uma auscultação interna levada a cabo, em 2008, por uma Oficina de Trabalho realizada em Luanda, chegou à conclusão de que o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) apresenta aspectos positivos (simplificações e correcções em relação ao Acordo Ortográfico de 1945), mas também constrangimentos e situações aporéticas.
Dentre os constrangimentos destacam-se: a perspectiva utópica para a existência de uma única grafia para a Língua Portuguesa; o elevado número de excepções à regra; a falta de consenso para a elaboração de um Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) e o elevado número de palavras com dupla grafia.
As aporias são aspectos que, cientificamente, não são explicados ou não são verificáveis. Após terem já sido apresentadas as primeiras quatro Bases do AO90, iremos comentar a próxima Base, de acordo com o Parecer Oficial de Angola sobre este mesmo assunto.
A Base V ao integrar referências à etimologia acaba por reconhecer a sua importância no plano ortográfico, o que não deixa de ser um aspecto positivo, mas torna-se incoerente relativamente à Base IV. A reorganização em dois grandes segmentos (emprego e contextos de uso) é outro dos aspectos positivos, já que no Acordo de 1945 aparecia disperso por vários grupos.
Torna-se, no entanto, necessário ponderar o facto de a Base V se referir à origem latina das palavras, mas ser omissa em relação às palavras de origens bantu e malaio-polinésias em uso na Língua Portuguesa, já que a língua é de todos. Para não ser exaustivo, de uma longa lista, passo a referir-me apenas a alguns vocábulos de origem no kimbundu. Mas há também apropriações de outras línguas africanas:
- “Andas” de “uanda”, que é uma tipoia presa a duas varas longas, e que se conduz apoiada aos ombros no transporte de pessoas ou cargas pesadas;
- “Banjo”: de “mbanza” (assim registado em 1894 pelo folclorista e filólogo americano Heli Chatelain em Folk-Tales of Angola), instrumento musical, desde pelo menos meados do século XVI, conhecido em Portugal pelo nome de banza e que aparece na xilogravura que ilustra a capa do folheto do “Auto da Natural Invenção” de Ribeiro do Chiado, anterior a 1549;
- “Bunda”: nádegas, de “mbunda”;
- “Cabaço”: no sentido popular de virgindade, hímen, de “kabasu”;
- “Cachimbo”: de “kixima”, escavação aberta numa superfície formando um oco ou buraco e que deu origem ao verbo cachimbar.
- “Cambada”: de dikamba, amigo, parceiro, camarada;
- “Careca”: de “makorica”, calvície;
- “Carimbar”, “carimbo”: palavras classificadas, em 1873, pelo bispo D. Francisco de São Luís, no seu glossário, citado como “vocábulos muito modernamente introduzidos na nossa língua em papéis do governo, para significar a marca pública que se punha ou se põe na moeda papel, ou na metálica, de “kirimbu”, marca, donde formão os povos [os povos de Angola] as vozes verbais “kuta-kirimbu” e “kubaka-kirimbu”, marcar;
- “Cochilar”: de “kochila”, dormitar, o que originou também “cochilo”, modorra, da forma “acucochila”;
- “Dengue”: de “ndengue”, o mais novo, criança, o que motivou o emprego do mesmo nome, por extensão, em Portugal, aos grados e carinhos com que as escravas procuravam acalmar as crianças choronas;
- “Encafuado”: metido em lugar ermo e escuro, de “ka-nfundu”, moradia em lugar distante e ermo;
- “Minhoca”: de “nhoca”, cobra, tendo aglutinado o prefixo locativo um, em dentro de, o que configura a ideia de anelídeo encontrado no interior da terra…
Segundo o investigador brasileiro Luís Ramos Tinhorão, na sua obra “Os Negros em Portugal; uma presença silenciosa”, terá sido o bispo do Reservatório de Coimbra e conde de Arganil, D. Francisco de São Luiz, posteriormente, Cardeal Saraiva que, em 1837, editou pela Tipografia da Academia Real das Ciências de Lisboa o “Glossário de Vocábulos Portugueses Derivados das Língua Orientais e Africanas, excepto Árabe”. Este levantamento inicial de D. Francisco de São Luiz revelava a existência de um total de vinte e sete vocábulos de origem africana de uso corrente em Portugal. No entanto, palavras como, por exemplo, “azagaia”, embora de origem africana (neste caso berbere), não constam deste glossário.
A continuação das pesquisas, principalmente no Brasil, descortinou a existência de mais de trezentas e cinquenta palavras de origem africana, sendo algumas delas também usadas em Portugal. Após o levantamento de D. Francisco de São Luiz, ocorreram outros estudos que permitiram triplicar a primeira lista dos vocábulos portugueses de origem africana, dada a contribuição de investigadores e africanistas como:
- A. J. de Macedo Soares, em 1880, “Sobre as Palavras Africanas Introduzidas no Português do Brasil”;
- Nelson de Senna, em 1921, “Africanismos no Brasil e Africanos no Brasil”, em 1938, do mesmo autor;
- Jacques Raimundo, em 1933, “O Elemento Afro-Negro no Português do Brasil”; Sousa Carneiro, em 1937, “Mitos Africanos no Brasil (glossário)”;
- Dante de Laytano, em 1936, “Os Africanismos do Dialecto Gaúcho (glossário)”;
- Aires da Mata Machado Filho, de 1944, “O Negro e o garimpo em Minas Gerais (glossário)”.
Na realidade, os vocábulos portugueses originários de termos africanos foram ignorados pelo AO90. Por estes e demais aspectos ainda a considerar, há preocupações que impedem o Estado angolano de ratificar o AO90 sem que se operem as rectificações que se fazem necessárias.
Do ponto de vista educativo, há a dificuldade de se proceder à capacitação de professores e estudantes para aspectos do AO90 que, cientificamente, não são suficientemente consistentes. Do ponto de vista económico mudar, após a reforma educativa, manuais escolares com pouco tempo de duração implicaria num esforço financeiro acrescido com sérios prejuizos para outras necessidades, bem mais urgentes, do sistema educativo.


* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais

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