ENTREVISTA ao jornal Público (12-12-2016)
“Nós consideramos que o normal é o respeito pelas ortografias
nacionais”
O
presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Artur Anselmo, anuncia para
Janeiro um documento chamado Subsídios
para o Aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico. É o retomar da polémica pelo
lado científico, num campo em que "a política é incompetente".
Presidente da Academia das
Ciências de Lisboa até finais de 2018, filólogo, professor, autor do recente
História do Livro e Filologia (Ed. Guimarães, 2015), Artur Anselmo é, aos 76
anos, impulsionador de um movimento de rejuvenescimento da Academia, onde
acabam de ser admitidos, na 1.ª secção da Classe de Letras, Manuel Alegre,
Helder Macedo (efectivos), António Lobo Antunes e José Manuel Mendes
(correspondentes). No dia 15 de Dezembro, às 15h, o ano académico encerrará com
uma conferência do general Ramalho Eanes, intitulada Portugal no Tempo e no Mundo. Para 2017, anuncia-se uma proposta de
revisão do acordo ortográfico de 1990 [AO90] sob o prisma da ciência, em
detrimento da política. Artur Anselmo explica as razões de tal iniciativa.
Um ano depois do colóquio Ortografia e Bom Senso, anuncia-se um
dicionário para 2018 e um “aperfeiçoamento” do acordo ortográfico. Isso
significa o quê?
Muitos confrades de ciências
estão a participar nos trabalhos do Dicionário. Na área da Química, da
Biologia, da Botânica, das ciências da Terra, das ciências do Espaço. Isso não
aconteceu em 2001, porque o dicionário foi feito, em boa parte, sob a direcção
do confrade João Malaca Casteleiro, por licenciados, professores de Português,
jovens, pessoas que não eram especialistas. Daí lacunas terríveis que
ocorreram. No outro dia descobri que faltava a palavra “robalo”! Ou
“semiótica”! Ou “semiologia”!
E quanto ao chamado "acordo ortográfico"?
É um problema científico. Por mais que nós possamos negociar com forças políticas, sociais, sindicais, na base está a ciência. Isto é uma Academia das Ciências! No dia em que aceitarmos de olhos fechados situações que ferem a nossa inteligência, o senso comum e a tradição científica, não estamos a cumprir as nossas obrigações.
Vemos que cada vez mais textos oficiais e oficiosos, como por exemplo
os dos museus, estão escritos numa ortografia mista, num absoluto caos…
Eu acrescento os boletins
camarários e as legendas dos cinemas. O último boletim da Câmara de Viana fala
em "concessão de uma estrada", mas escreve com ç cedilhado. É uma
trapalhada. E o corrector não marca erro, porque não faz interpretação semântica!
Portugal passou de um acordo com 51 bases, o de 1945, para um acordo
com 21 bases, o de 1990, muitas delas decalcadas das anteriores. Como explica
isso?
São transcrições abusivas, sem
citar a fonte. Desde o primeiro dia que eu senti isso. Isso chama-se plágio,
plágio descarado, é crime.
Mas o que pode fazer a Academia, no ponto em que estamos?
Eu vivo numa casa onde há
pessoas que pensam de maneira diferente da minha. E o presidente da Academia
não é o seu dono e muito menos o ditador da Academia. O presidente tem acima
dele o plenário de efectivos. Eu não faço nada de significativo para a vida
académica que não leve ao plenário! O que vai ser apresentado é uma proposta no
sentido de seguirmos a ordem alfabética de 1945, mas assinalando em bold
(antigamente dizia-se "negrito", ou "normando") aquilo que
foi alterado. Portanto, teremos "concepção" com o p em bold. A pessoa
quer saber como escreve hoje e vai lá.
Mesmo assim, o problema fica por resolver. Porque estamos a arrastar
uma situação dúbia para o ensino, em que se misturam as normas devido às
grafias duplas e às facultatividades…
Porque o chamado
"acordo" permite essas situações dúbias. Sendo o órgão de consulta do
governo em matéria linguística, a Academia foi consultada em 1990, mas não foi
consultada quando um ministro resolveu pô-lo em vigor. Como é que saímos disto?
Com uma reunião interacadémica – porque não há outra maneira de fazer as
coisas.
Mas o que é que significa "aperfeiçoar o acordo", como se
diz?
Há coisas que podem não causar
grandes problemas, porque, quer queiramos, quer não, há seis anos que isto anda
nas escolas, há crianças que desde o primeiro ano seguem as normas do acordo.
Agora se numa negociação há pessoas que perdem logo a cabeça, não é possível.
Por isso é que, infelizmente, são as ditaduras que conseguem resultados. Em
1945, não esqueçamos, Portugal vivia numa ditadura e o Brasil também…
Em termos concretos, o que é que está a ser feito neste momento na
Academia?
Nós vamos agora publicar em
Janeiro os Subsídios para o
Aperfeiçoamento do Acordo Ortográfico. Estão prontos, foram feitos por uma
equipa dirigida pela Ana Salgado, na última reunião já tiveram um acordo de
princípio, agora vão ao plenário de efectivos. É uma contribuição, neste
momento a Academia não pode fazer mais do que isto. Temos de agir com
prudência, mas sem abandonar o critério científico.
No documento agora divulgado pela Academia diz-se isto: “Qualquer
tentativa de uniformização ortográfica nos diversos países que usam a língua
portuguesa como oficial é utópica.” Mas essa não é a base em que assenta o
acordo, nessa utopia?
Essa formulação levantou aqui
muitas objecções. Nós consideramos que o normal é o respeito pelas ortografias
nacionais. Os angolanos têm todo o direito de escrever kwanza com K e com W.
Como o “center” dos americanos e o “centre” dos ingleses. A época mais pacífica
em matéria ortográfica medeia entre 1955 e 2010; em 1955, Café Filho rasga, no
Brasil, o acordo assinado por Getúlio Vargas; e em 2010 o senhor ministro meteu
na cabeça aplicar uma coisa aprovada 20 anos antes, durante os quais nada se
fez nada para melhorar o acordo! Houve o desinteresse mais completo!
Uma decisão mais clara, hoje, tem de passar pelo poder político?
Tem de passar. A Academia vai
fazer uma sugestão e depois vai aguardar ser chamada para participar em
reuniões. Isto, se o poder político estiver interessado em fazê-lo. Eu tenho a
maior confiança no actual Presidente da República, mas não haver ninguém no
Governo que diga ‘Talvez possamos melhorar isto’, faz-me uma aflição tremenda.
Têm recebido, da parte de associações, reacções adversas ao acordo?
Esse problema preocupa-me
muito. Pela correspondência que recebo, tenho a sensação de que a Sociedade
Portuguesa de Autores, o Pen Clube, a Associação Portuguesa de Escritores,
todos estes representantes da escrita em Portugal estão a reagir. E contam-se
pelos dedos os escritores que aceitam o chamado "acordo ortográfico".
Voltando à proposta da Academia: ao mexer no texto do acordo, ao
alterá-lo, não se está de certa maneira a acabar com ele? Porque é um acordo
internacional…
O que pode acontecer é que, a
dada altura, as divergências sejam tão grandes que já não faça sentido nenhum
voltar à ideia de um acordo. Por isso é que preferíamos a expressão
“convenção”, porque uma convenção a todo o momento pode ser alterada.
Mas isso significava deitar este acordo fora.
Claro. Mas aí tinham de entrar
os juristas. E o poder político também não está a dar nenhuma importância aos
juristas, porque já houve vários, e alguns eminentes, que se pronunciaram e
ficou tudo na mesma.
Privilegia-se, neste caso, ainda a política?
Sim, e aí é que está o mal,
porque neste campo a política é incompetente. E por isso deve ter cuidado, não
deve meter o nariz onde não é chamada. E aqui não é chamada. Em 1945, até à
parte em que entrou o poder político, houve o cuidado de só envolver nisto
cientistas da língua. Aqui as coisas não começaram mal, o pior foi depois. Ora,
quando o senhor ministro da Cultura, que eu muito respeito como poeta, é
interrogado sobre o acordo e diz ‘O meu editor é que trata’, isto, francamente,
não pode ser!
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