A leitura do guião da Prova de Avaliação de
Conhecimentos e Capacidades desassossegou-me o espírito por várias razões.
1. Em relação ao conteúdo, não passa de uma
açorda espapaçada, uma mistura de itens tipo testes PISA (aplicados a miúdos de 15
anos) com a secção lúdica dos jornais (quebra-cabeças, enigmas, etc.).
2. Quanto ao critérios de classificação,
escolho três extratos do guião.
2.1. "Todas as ocorrências
de um mesmo erro estão sujeitas a desvalorização."
O bom senso e as técnicas de correção
aconselham precisamente o contrário: erros repetidos são contados como uma só
ocorrência. Instintivamente, veio-me à memória uma passagem do "Doente
Imaginário", de Molière: "Ignorantus,
ignoranta, Ignorantum."
2.2. "São classificadas
com zero pontos as respostas que não atinjam o nível de desempenho mais baixo
ou quando se verifique uma das seguintes condições: (…)
–– mais de seis erros de sintaxe;
–– mais de dez erros inequívocos de pontuação;
–– mais de dez erros de ortografia ou de morfologia."
IMPRESSIONANTE! É caso para dizer: Que se
lixe o conteúdo!
Considerando a subjetividade que lhe está
subjacente, o que é um erro inequívoco de pontuação?
Respondendo a esta visão “a retalho” da
produção escrita, cito Carlos Rocha, consultor do Ciberdúvidas: “Vemos, assim, que as fronteiras entre morfologia, sintaxe
e semântica não são estanques. Pelo contrário, trata-se de domínios que se
sobrepõem de tal maneira, que a descrição linguística e gramatical só os separa
por imperativos metodológicos.”
Espera-se que todos os classificadores saibam contar até dez…
3. “só é considerada correta a grafia que segue o que se encontra
previsto no Acordo Ortográfico de 1990, atualmente em vigor.”
Não é este o critério aplicado nos exames
nacionais nem a Vasco da Graça Moura ou
ao juiz Rui Teixeira, estando o AO também em vigor na administração
pública (desde janeiro de 2012). Mais uma vez, só há voz grossa para os
professores…
Face ao “rigor”, resolvi dar uma
espreitadela ao portal do governo e à DGIDC para ver como estavam a ser tratados a
língua portuguesa em geral e o AO em particular. Considerando que o exemplo
deve vir de cima, esperava uma aplicação irrepreensível das regras do AO90 e o
respeito absoluto pela sintaxe, pontuação, ortografia e morfologia.
Aplicando os critérios a que os professores
vão estar sujeitos, bastaram 20 minutos para ter assunto para este artigo.
1. Um tiro no AO:
“21 de junho de 2011”, mas, duas linhas depois: “26 de Outubro de 2012”.
2. e 3. Erro “inequívoco” de pontuação e 1º tiro no AO45, ou seja, um dois em um!
“Estes recursos cobrem as mais variadas áreas (...), e encontram-se à disposição
para utilização de todas as escolas e professores, desde a educação pré escolar
até ao ensino secundário.”
*Diz Edite Prada, no Ciberdúvidas: “Na copulativa, por exemplo, se o sujeito das orações for
o mesmo, não é permitida a colocação de vírgula.” Qual é o sujeito? "Estes recursos"...
*“Emprega-se o hífen em (…)compostos
formados com prefixos que têm acentos gráficos, como além, aquém, pós (paralelo
de pos), pré…”
Nº 16 da BASE XXIX do AO de 1945 (não alterado pelo AO90).
4. Este até dói…
“É químico, e foi professor catedrático da Faculdade de Ciências da
Universidade do Porto”
O sujeito de ambas as orações é o Secretário de
Estado do Ensino Superior…
5. E vão quatro!
“era membro do Conselho Nacional de Educação e do
Conselho de Ensino Superior Militar, e coordenador do projeto Casa das Ciências, da Fundação Calouste
Gulbenkian.”
E o sujeito é… o Secretário de Estado do Ensino Superior!
6. Uma mão cheia!
“Escreveu diversos artigos sobre ensino superior, e foi promotor de Bolonha
por nomeação ministerial em 2004-2005.”
Não preciso de dizer quem é o
sujeito, pois não?
7. Meia dúzia!
“É professor do Ensino Básico desde 1980, e está integrado no quadro
do Agrupamento de Escolas Manoel de Oliveira, no Porto, desde 2006.”
O
sujeito mudou, mas continua a ser só um nas duas orações: o Secretário de
Estado do Ensino Básico e Secundário…
8. Mais um tiro no AO!
“pessoal não-docente”
Ao contrário do que acontecia antes, devem
ser escritas sem hífen sequências constituídas pelos advérbios “não” ou “quase”
e outra palavra: (não agressão, não alinhado, não fumador, quase dito, etc.).
9. Mais um…
“para além de dar a conhecer materiais e projectos que
possam ser inspiradores e úteis.”
O “c” escapou aos cortes...
10. Mais uma chumbada na asa do AO45…
“bilinguísmo
e mobilidade na Europa”
Não há nem havia acento…
11. A concluir, um golpe de fisga no AO45!
“palavras chave,
título, autor, assunto, etc.”
Havia e continua a haver hífen, exprimindo
a unidade semântica que liga as duas palavras.
Classificação final: ze-ro!
Nota final: Um abraço solidário para todos os
que foram enfiados neste barco. Pode ser que a prova caia… Basta não haver
vigilantes nem classificadores. Por um lado, o ECD não contempla estas novas “funções” e, por outro, é sempre possível aderir à greve convocada para o dia da prova.
Extratos retirados de: