Um artigo interessante que permite compreender
melhor a posição de Angola em relação ao Novo Acordo Ortográfico.
Na esteira de um parecer sobre o Acordo Ortográfico
Filipe Zau |*
15 de Abril, 2017 (Jornal de
Angola)
O acordo ortográfico é uma convenção pela qual se devem reger
os utilizadores de uma língua, seguindo, em cada país, a lei oficial
estabelecida para a escrita desse mesmo idioma que, como todos os outros, não
tem proprietário. O dono de qualquer língua é apenas o usuário da mesma.
Uma auscultação interna levada a cabo, em 2008,
por uma Oficina de Trabalho realizada em Luanda, chegou à conclusão de que o
Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) apresenta aspectos positivos (simplificações
e correcções em relação ao Acordo Ortográfico de 1945), mas também
constrangimentos e situações aporéticas.
Dentre os constrangimentos destacam-se: a
perspectiva utópica para a existência de uma única grafia para a Língua
Portuguesa; o elevado número de excepções à regra; a falta de consenso para a
elaboração de um Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) e o elevado número de
palavras com dupla grafia.
As aporias são aspectos que, cientificamente, não
são explicados ou não são verificáveis. Após terem já sido apresentadas as
primeiras quatro Bases do AO90, iremos comentar a próxima Base, de acordo com o
Parecer Oficial de Angola sobre este mesmo assunto.
A Base V ao integrar referências à etimologia
acaba por reconhecer a sua importância no plano ortográfico, o que não deixa de
ser um aspecto positivo, mas torna-se incoerente relativamente à Base IV. A
reorganização em dois grandes segmentos (emprego e contextos de uso) é outro
dos aspectos positivos, já que no Acordo de 1945 aparecia disperso por vários
grupos.
Torna-se, no entanto, necessário ponderar o facto
de a Base V se referir à origem latina das palavras, mas ser omissa em relação
às palavras de origens bantu e malaio-polinésias em uso na Língua Portuguesa,
já que a língua é de todos. Para não ser exaustivo, de uma longa lista, passo a
referir-me apenas a alguns vocábulos de origem no kimbundu. Mas há também
apropriações de outras línguas africanas:
- “Andas” de “uanda”, que é uma tipoia presa a
duas varas longas, e que se conduz apoiada aos ombros no transporte de pessoas
ou cargas pesadas;
- “Banjo”: de “mbanza” (assim registado em 1894
pelo folclorista e filólogo americano Heli Chatelain em Folk-Tales of Angola),
instrumento musical, desde pelo menos meados do século XVI, conhecido em
Portugal pelo nome de banza e que aparece na xilogravura que ilustra a capa do
folheto do “Auto da Natural Invenção” de Ribeiro do Chiado, anterior a 1549;
- “Bunda”: nádegas, de “mbunda”;
- “Cabaço”: no sentido popular de virgindade,
hímen, de “kabasu”;
- “Cachimbo”: de “kixima”, escavação aberta numa
superfície formando um oco ou buraco e que deu origem ao verbo cachimbar.
- “Cambada”: de dikamba, amigo, parceiro,
camarada;
- “Careca”: de “makorica”, calvície;
- “Carimbar”, “carimbo”: palavras classificadas,
em 1873, pelo bispo D. Francisco de São Luís, no seu glossário, citado como
“vocábulos muito modernamente introduzidos na nossa língua em papéis do
governo, para significar a marca pública que se punha ou se põe na moeda papel,
ou na metálica, de “kirimbu”, marca, donde formão os povos [os povos de Angola]
as vozes verbais “kuta-kirimbu” e “kubaka-kirimbu”, marcar;
- “Cochilar”: de “kochila”, dormitar, o que
originou também “cochilo”, modorra, da forma “acucochila”;
- “Dengue”: de “ndengue”, o mais novo, criança, o
que motivou o emprego do mesmo nome, por extensão, em Portugal, aos grados e
carinhos com que as escravas procuravam acalmar as crianças choronas;
- “Encafuado”: metido em lugar ermo e escuro, de
“ka-nfundu”, moradia em lugar distante e ermo;
- “Minhoca”: de “nhoca”, cobra, tendo aglutinado o
prefixo locativo um, em dentro de, o que configura a ideia de anelídeo
encontrado no interior da terra…
Segundo o investigador brasileiro Luís Ramos
Tinhorão, na sua obra “Os Negros em Portugal; uma presença silenciosa”, terá
sido o bispo do Reservatório de Coimbra e conde de Arganil, D. Francisco de São
Luiz, posteriormente, Cardeal Saraiva que, em 1837, editou pela Tipografia da
Academia Real das Ciências de Lisboa o “Glossário de Vocábulos Portugueses Derivados
das Língua Orientais e Africanas, excepto Árabe”. Este levantamento inicial de
D. Francisco de São Luiz revelava a existência de um total de vinte e sete
vocábulos de origem africana de uso corrente em Portugal. No entanto, palavras
como, por exemplo, “azagaia”, embora de origem africana (neste caso berbere),
não constam deste glossário.
A continuação das pesquisas, principalmente no
Brasil, descortinou a existência de mais de trezentas e cinquenta palavras de
origem africana, sendo algumas delas também usadas em Portugal. Após o
levantamento de D. Francisco de São Luiz, ocorreram outros estudos que
permitiram triplicar a primeira lista dos vocábulos portugueses de origem
africana, dada a contribuição de investigadores e africanistas como:
- A. J. de Macedo Soares, em 1880, “Sobre as
Palavras Africanas Introduzidas no Português do Brasil”;
- Nelson de Senna, em 1921, “Africanismos no
Brasil e Africanos no Brasil”, em 1938, do mesmo autor;
- Jacques Raimundo, em 1933, “O Elemento
Afro-Negro no Português do Brasil”; Sousa Carneiro, em 1937, “Mitos Africanos
no Brasil (glossário)”;
- Dante de Laytano, em 1936, “Os Africanismos do
Dialecto Gaúcho (glossário)”;
- Aires da Mata Machado Filho, de 1944, “O Negro e
o garimpo em Minas Gerais (glossário)”.
Na realidade, os vocábulos portugueses originários
de termos africanos foram ignorados pelo AO90. Por estes e demais aspectos
ainda a considerar, há preocupações que impedem o Estado angolano de ratificar
o AO90 sem que se operem as rectificações que se fazem necessárias.
Do ponto de vista educativo, há a dificuldade de
se proceder à capacitação de professores e estudantes para aspectos do AO90
que, cientificamente, não são suficientemente consistentes. Do ponto de vista
económico mudar, após a reforma educativa, manuais escolares com pouco tempo de
duração implicaria num esforço financeiro acrescido com sérios prejuizos para
outras necessidades, bem mais urgentes, do sistema educativo.
* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em
Relações Interculturais